quarta-feira, 30 de junho de 2010
DE FRENTE PARA A MATA
Ontem vimos o filme Brilho de Uma Paixão sobre John Keats, o grande poeta inglês. O filme é magnífico. Por favor, não percam. Além do belíssimo texto, há uma imensa e comovente história de amor. E os cenários, o figurino... Por duas horas vivemos intensamente no século XIX.
Terminei de ler o livro Clarice, de Ana Miranda. Fiquei impactada. Poesia pura, navegamos pela alma da Clarice como se num barco.
Começo Equador de Miguel Souza Tavares , filho da poeta Sophia de Mello Breyner. Já estou amando . Assim, logo no começo, me lembra Eça de Queiroz. Acaricio o livro e suspiro de felicidade.
terça-feira, 29 de junho de 2010
ANDANDO AO CONTRÁRIO
As ruas da cidade estavam vazias, nenhum carro. O rádio do táxi estava ligado, saiu o primeiro gol. Logo outro. Chegamos na Urca com dois a zero.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
BONDES NO RIO
Em 1968 me casei e fui morar em Juiz de Fora. Ia para a escola de bonde. Foi o último ano do bonde em Juiz de Fora. Amo os bondes como amo os trens. Por que retiraram os bondes? Há algo mais bucólico, mais poético? Os bondes são poesia sobre trilhos. E penso no conto da Clarice em que uma mulher do bonde vê um cego na calçada e seu mundo se desmorona. Os bondes possuem o charme das coisas lentas.
Porque não reinventamos os bondes, já que hoje leio que as máquinas polaroid estão de volta fazendo o maior sucesso?
domingo, 27 de junho de 2010
CLARICE
O outro livro é Clarice, que estou lendo , um livro de ficção sobre Clarice Lispector, uma incursão ao seu interior. A estrutura me lembra As Cidades Invisíveis, do Ítalo Calvino e também a escrita. É como se ela, a autora, passeasse pelas coisas com o olhar da Clarice.
A CIDADE DENTRO DE CLARICE
" Dentro de Clarice não há uma cidade, mas um campo silencioso, iluminado pelos raios de luar. A cidade está fora dela, em torno. Só pode ser lembrada como um sonho, ou como a impressão de alguma coisa que já aconteceu e vai acontecer novamente. Uma cidade feita de vidro, luzes, água, areia.
Um campo é mais amplo do que uma cidade. Num campo, um espírito pode vagar com mais liberdade, pois espíritos voam e com muita rapidez. A cidade está em torno de Clarice como as grades estão em torno de um prisioneiro. Os prédios altos de cimento são as barras de ferro que não a deixam partir para sempre, rumo ao infinito."
Conhecí Clarice Lispector quando eu tinha 23 anos. Eu não estava preparada para o mistério que era Clarice. Fui levada até sua casa por Olga Borelli que foi sua secretária. Clarice gostou de mim e me perguntou: " Você escreve?" Respondí que não, eu não escrevia. Então ela me disse: " Mas vai escrever. "
Atendendo ao pedido de Iara, uma leitora do blog, reproduzo um poema que fala de saudade. Outra leitora, Ângela, tem um carinho especial pelo poema.
FOTOGRAFIA AMARELADA
O tempo pinta de amarelo
a fotografia:
de amarelo os olhares,
os sorrisos, as roupas,
as mãos, os sapatos.
Não é um amarelo qualquer:
é uma espécie de outono,
é um amarelo saudade.
in Todas as Cores dentro do Branco
sábado, 26 de junho de 2010
ESPELHO
1 - Quando era criança na minha casa não tinha telefone. Havia uma extensão do telefone da loja do meu pai que era ao lado, mas nós crianças nunca usávamos. Celular não era nem ficção científica.
2- Quando era bem pequena não tínhamos televisão, só quando fiz 10 anos vi televisão pela primeira vez. Em preto e branco.
3 - Andava pelo bairro sozinha, com 7 anos, para lá e para cá, sem perigo nenhum, no Rio de Janeiro. Visitava minhas amigas em outras ruas, meus avós. Não existia computador, vídeo-games, etc. Brincávamos de teatro.
4 - A casa ficava aberta o dia inteiro. Vivíamos numa cidade grande como se estivéssemos numa cidadezinha do interior.
5 - Acompanhávamos as novelas pelo rádio. Tinhamos , nós crianças, muito tempo livre. Passávamos as férias em Paquetá, a baía tinha águas transparentes.
A comunicação em tempo real torna o mundo tão pequeno, qualquer lugar, qualquer pessoa ao alcance da mão. Tudo mudou. O tempo mudou. Mas nós mudamos? O que nos difere como seres humanos dos homens dos outros tempos?
ESPELHO
espelho, espelho meu:
diga a verdade,
quem sou eu?
Se às vezes me estilhaço,
se às vezes viro mil,
se quero mudar o mundo,
se quero mudar o rosto,
se tenho sempre na boca
um gosto de água e de céu,
se às vezes sou tão só
quando me viro do avesso,
se às vezes anoiteço
em plena luz do sol
ou então amanheço
com vontade de voar,
espelho, espelho meu:
diga a verdade,
quem sou eu?
in Recados do Corpo e da Alma, ed. FTD, 2003
sexta-feira, 25 de junho de 2010
BEM CEDINHO DE MANHÃ
quinta-feira, 24 de junho de 2010
EDITAIS
Agora eu e Evelyn, minha irmã, saíremos para caminhar. Levarei o tratamento da radioterapia cmo se estivesse de férias. Afinal, já entreguei meus últimos trabalhos e estou livre. Iremos ao cinema. Encontraremos os amigos.
Evelyn participa do Edital de Cultura do Rio de Janeiro com seu Mural Coletivo e se ganhar fará um mural de azulejos em Saquarema. Estamos todos torcendo. Ela concorrerá a outros editais e agora só falamos sobre editais, planilhas, custos, etc. Vida de artista é um trapézio. Durante anos meus livros é que me conduziam até lugares e pessoas. Um impulso do trapézio e lá estava eu em Macapá, por exemplo, ou em Sevilha.
Para onde os murais da Evelyn a levarão? Há uma possibilidade de que embarque para Angola...
quarta-feira, 23 de junho de 2010
MANUAL DA DELICADEZA
Por exemplo, para a letra M , a palavra
Moinho
São as águas
da delicadeza
que movem o mundo.
Uma palavra amorosa,
um gesto,
uma carícia,
fazem a Terra
mais azul
e mais leve,
trazem à pele
a memória mais antiga:
Também somos um grão
de estrela e de infinito.
Pois bem, na Copa da África do Sul, país fraturado durante tantos anos pelo regime mais perverso do mundo, o da separação entre as pessoas, onde a cura é a delicadeza, estamos vendo um espetáculo de brutalidade e falta de educação. O técnico brasileiro vocifera impropérios, o técnico francês nega-se a apertar a mão do técnico da África do Sul. Milhões de pessoas assistem. O que isso pode trazer de prejuízo ao mundo? Muita coisa. Crianças e jovens precisam aprender e exercitar a delicadeza, pois nós, seres humanos, somos animais cruéis, e os chamados bons sentimentos precisam ser continuamente repetidos para que se tornem algo natural. Uma pessoa pública, qualquer que seja, a quem tem os holofotes sobre a sua pessoa, tem que ser um exemplo de cordialidade e boa educação. O que estamos vendo é um desrespeito com os anfitriões. Os africanos merecem um espetáculo melhor.
terça-feira, 22 de junho de 2010
RITUAL
Estou orgulhosa: uma página do blog será reproduzida num livro didático da ed. Saraiva.
segunda-feira, 21 de junho de 2010
SOBRE A LIBERDADE
Semprún foi comunista e mais tarde foi expulso do partido ao renegar o Stalinismo. Diz Semprún, nenhuma ideologia pode cercear a liberdade do homem, seu bem supremo. E hoje vê com alegria uma Europa sem guerras e apesar de todos os males, é um otimista: acredita no homem, na arte, na liberdade. Ele diz que perdeu as certezas, mas não as ilusões.
Latuf, meu amigo querido, vai a Buenos Aires ao encontro de Maria Kodama. Vai falar num encontro sobre Borges. Seu tema: Mário de Andrade e Borges.
Guga, meu filho músico que vive em Granada, na Espanha, fez um concerto na cidade de Pozo Blanco, na Andaluzia. Ele me conta que a cidade foi construída ao redor de um poço. A casa onde tocou tem 500 anos e nunca deixou de estar habitada. Nunca esteve em ruínas. O governo comprou a casa e agora é um Centro Cultural. Guga fala da platéia, umas 200 pessoas, gente do povoado, jovens, velhos, crianças, em silêncio absoluto.
Arte na escola modifica o comportamento das crianças e jovens. Só a arte nos salva e nos torna seres humanos melhores.
Tive um problema no site e os e-mails enviados não estavam chegando ao seu destino. Peço desculpas por ter deixado de responder a tantas mensagens que não me chegavam. Parece que o Gabriel, o menino educadíssimo que cuida do site, já solucionou o problema.
domingo, 20 de junho de 2010
ABIDJAN
que a Costa Marfim mergulhou na miséria total , consequencia da guerra. A quem interessam as guerras?
sábado, 19 de junho de 2010
PILAR DEL RIO
Passamos uma semana diariamente com ele, jantávamos todos os dias juntos. Pilar, mulher belíssima , inteligente, sedutora, nos deixava à vontade. Quando tocamos a campainha da casa a primeira vez, ela veio nos abrir a porta, descalça, toda vestida de branco.
Assisti a todas as entrevistas em seu belo escritório. Era tão bom ouvi-lo que a noite caía sem que nos déssemos conta. Foi uma semana de sonho. Lanzarote é linda, com suas casas brancas, os vulcões.
Ao longo do tempo nos encontramos outra vez em Lisboa, onde Saramago e Pilar nos levaram para comer no restaurante onde celebraram seu casamento, junto com Céu, amiga do casal. Comemos o melhor bacalhau do mundo. Nos encontramos em Madrid, no Rio, em São Paulo e em março último Pilar prometeu que nos visitaria um dia em Saquarema.
Amo o Memorial do Convento, é o meu livro preferido. Blimunda, a mulher que enxerga as pessoas por dentro, é mais do que um personagem, é um arquétipo. Amo O Cerco de Lisboa, são meus livros preferidos. Nos dois, uma bela história de amor. Aliás, Saramago acreditava no amor, por isso o livro do Juan se chama O Amor Possível. Saramago se dizia ateu e comunista, mas escreveu exaustivamente sobre Deus. No Evangelho Segundo Jesus Cristo há um diálogo belíssimo entre Deus e o Diabo e em Caim, entre Deus e Caim. Quanto ao seu comunismo, para mim é incompreensível. como se pode ser comunista sabendo que o comunismo matou milhões de pessoas? Niemeyer também se diz comunista e também não entendo. Basta conhecer um pouco de história para saber o desastre que o comunismo provocou.
Mas Saramago não escreveu a mais bela história, a sua própria história de amor com Pilar del Rio.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
JOSÉ SARAMAGO
GARÇA
GARÇA NA PEDRA
A garça se equilibra
entre a Terra e o céu:
imóvel na pedra,
com sua leveza
sustenta o mundo.
Este é um dos poemas de Todas as Cores Dentro do Branco , que fará parte da coletânea da Objetiva.
Já que nada modifica a mente dos corruptos , que notícia maravilhosa saber que para se candidatar a um cargo público há que ter a ficha limpa. Comemoremos. Mas eu li que quanto mais impunidade, mais os não corruptos podem passar para o lado de lá. O cérebro passa a entender que o ilícito é lícito. O Brasil ganha a Copa da Corrupção com folga. Que lástima. Dinheiro público tem que ser sagrado.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
CASA
Preciso fechar o livro dos quatro elementos para começar a radio, é um imperativo estranho. Os poemas são muito fortes e preciso mergulhar em outra coisa. Sinto que o livro está compacto, completo.
Ontem cozinhei pela primeira vez desde a cirurgia. Foi muito bom. Cozinhar me traz de volta ao centro. Fiz quinua com legumes e badejo com molho de tomate. Incrível como a quinua acompanha bem o peixe, parece cuscus.
Separo o Memorial do Convento do Saramago para reler. Terei a Blimunda comigo.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
URCA
Um de seus trechos diz:
" O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite, nem por isso nos parece menos bela."
domingo, 13 de junho de 2010
VENTO DISTANTE
Agora trabalho no livro de poemas para a ed. Objetiva. Tenho até julho para entregar. Depois juro que quero ficar bastante tempo sem escrever.
Hoje o domingo está escuro, as ondas do mar estão imensas. Faz muito frio e parece que estamos em alguma cidade perdida da Noruega. Não se enxerga nenhum ser humano a léguas de distância. Devo confessar que amo este tempo. Meu lado sombrio se sente em casa, é como se fosse alimento.
Amanhã irei cedo para o Rio. Vamos almoçar eu e Evelyn, minha irmã, em Copacabana com Aída, uma amiga da juventude da minha mãe que reapareceu do nada. Ela nos escreveu quando minha mãe ainda estava viva. Agora chegou de Israel onde vive e nos trouxe presentes. Mas o maior presente serão as histórias da juventude da nossa mãe que ela irá nos contar.
sábado, 12 de junho de 2010
PARA O DIA DOS NAMORADOS
LAGO
No lago dos desejos
teu corpo flutua.
Entrelaço teu nome no meu,
trança mágica
com que me alimento.
GEOGRAFIA
Faça do meu corpo
o teu mapa,
teu continente perdido,
Atlântida de mistérios,
tua ilha nunca antes habitada.
Faça do meu corpo
teu porto e teu pequeno barco.
Faça do meu corpo
tua carta,
tua secreta caligrafia,
tua estrela cadente.
NOITE
A noite, com sua
partitura de mistérios
faz música.
Fecho os olhos
e ouço o som
do universo
como se fosse
um zumbido
de anseios e luz.
Caminho sobre
a linha invisível
dos desejos.
do livro No Cais do Primeiro Amor, ed. Larousse
sexta-feira, 11 de junho de 2010
ÁFRICA
quinta-feira, 10 de junho de 2010
SAPATO VELHO
terça-feira, 8 de junho de 2010
CURA
segunda-feira, 7 de junho de 2010
AINDA ISRAEL E PALESTINA
É terrível o que ele diz. Por conta disso reli ontem o relato La Douleur de Marguerite Duras, onde ela conta a espera angustiada pela volta do seu marido Robert L , prisioneiro de um campo de concentração. Ela é uma escitora fortíssima e consegue passar tudo o que viveu do lado de fora e do lado de dentro: as estações de trens abarrotadas das mulheres que esperavam seus homens e a angústia quase mortal que a impedia de comer, dormir, tomar banho, respirar. A divisão entre os que esperavam alguém que poderia chegar a qualquer momento e os que não esperavam ninguém. A incerteza quando a guerra ainda vivia seus últimos dias , o horror que tomava o mundo ao se saber a verdade sobre os fornos crematórios, a morte de milhões de pessoas perpetradas pelo povo que construiu a mais bela música e a mais bela filosofia. Ela escreveu seu relato como se fosse um diário, no calor do momento e anos depois o descobriu e nem se lembrava do que havia escrito. Nisso reside a força do texto, é uma viagem no tempo. Claro que não se pode comparar nada com o Holocausto, a tentativa de extermínio de todo um povo foi algo único, mas o povo que sofreu todas as humilhações do mundo não pode humilhar outros seres humanos . Sob pena de ouvir o que El roto escreveu. Ouvi o relato de muitos jornalistas espanhóis que estavam no navio. Os soldados , depois do massacre, separaram europeus e muçulmanos. Os muçulmanos, eles contam, tiveram que ficar ajoelhados. Os judeus já viveram na pele a mesma história: como repetir? Em algum lugar se encontra um atalho para a paz.
E os humanos não se contentam em matar outros humanos. Se você que lê meu blog é contra matanças e ama as baleias, por favor, entre no site www.cerocazadeballenas.cl e assine um manifesto contra a caça das baleias no Chile. É vital para as baleias, esses seres tão maravilhosos, inteligentes, amorosos. E ainda por cima as baleias cantam!
domingo, 6 de junho de 2010
LUNA
A entrevista que li com Julia Bacha, cineasta, na Revista de Domingo do O Globo, aquece o coração de qualquer um : seu filme Budrus sobre uma aldeia palestina que resiste pacificamente contra a ocupação israelense está virando um movimento. Há em Israel ativistas pela paz que arriscam a própria vida. Ela nos diz que de 60 a 70% dos dois lados estão prontos para a paz, uma solução que inclua os dois estados mas cada lado não acredita que o outro lado esteja preparado. Existem advogados em Israel que defendem o direito dos Palestinos. Muitos ativistas se movimentam em Israel pela paz mas o governo israelense não dá nenhuma visibilidade a estes movimentos. Não podemos nunca nos esquecer que a truculência só aumenta a violência e que muitos judeus no mundo inteiro, como eu, por exemplo, almejam um Estado Palestino e a convivência pacífica entre os dois povos. O escritor Amoz Oz , o grande escritor israelense, é um porta voz do que pensam os que amam a paz.
sábado, 5 de junho de 2010
FEZ E TANGER
Agora, quando for a Espanha em setembro, já que estarei na Andaluzia, decidi ir ao Marrocos. Quero ir de barco. Vou a Tanger e Fez. Construo minha viagem.
Tenho meus rituais cedo de manhã. Abrir a casa e olhar o mar, já que quase vivemos dentro de um barco: o mar ocupa toda a casa. Hoje o mar está escuro e pesado. Chove e faz frio. Um surfista solitário está lá dentro como um peixe.
Abro ao acaso o Livro do Desassossego do Fernando Pessoa, já que é assim que deve ser lido:
" Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro. " (Cia das Letras, página 321)
sexta-feira, 4 de junho de 2010
LUZ
Falamos junto à luz. La fora a noite
imóvel brilha sobre o mar parado.
À sombra das palavras o teu rosto
em mim se inscreve como se durasse.
Tanta maravilha num fragmento tão pequeno. Mesmo na escuridão da noite, a luz. E a sombra, seu contraponto. Luz e sombra escrevem a memória.
Ontem passeamos entre os tapetes de sal com a lagoa e o mar como moldura. Pessoas no ofício simples de produzir beleza se movimentavam numa coreografia perfeita, caótica, não ensaiada . O ar vibrava cheio de cores.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
INFÂNCIA
Juan me conta: ontem, no ônibus, voltando de Bacaxá para casa, uma velhinha de 98 anos, sozinha, sentou-se ao seu lado. Soube da sua idade porque muitas pessoas a conheciam e comentavam. Toda enrugadinha , levava uma pequena bolsa preta de onde tentava tirar 1 real para comprar uma água pela janela . Juan pagou sua água. Ela fechou a bolsinha e sorriu.
terça-feira, 1 de junho de 2010
PROFESSOR LATUF
A 15ª. Roda de Leitura Roseana Murray, realizada dia 19 de maio do ano em curso, ocorreu dentro dos protocolos, que regeram as edições anteriores, mantendo, portanto, uma tradição de cultura em nossa Saquarema, tão bela e tão carente de ações culturais duradouras.
Cheguei bem antes do horário de abertura, 9hs., porque estava com muitas saudades de nossas Rodas (a anterior acontecera dia 25 de novembro de 2009) e daquela casa amarela, postada frente ao Atlântico, e também porque gosto de ver chegando as pessoas, que se mostram atentas, cheias de expectativas e como quem vai ganhar presente.
Estava lindo o dia outonal, com o mar imensamente turquesa e um clima agradabilíssimo, soprando que estava uma leve brisa. Aos poucos, a varanda marítima encheu-se de crianças e professores, vindo de dez escolas municipais; a cartografia desta Roda de Leitura abrangia todo o município, com suas escolas espalhadas pelos quatro cantos e recantos: Clotildes de Oliveira Rodrigues (na Vila), Padre Manuel (Bacaxá), Castelo Branco (Boqueirão), Gustavo Campos da Silveira (Gravatá), Luciana Santana Coutinho (Porto da Roça), Ismênia Ramos Barroso (Jaconé), Menaldo Carlos (Caixa d’Água), Elcina de Oliveria Coutinho (Água Branca), Edílson Vignoli (Rio d’Areia), Orgé Ferreira dos Santos (Itaúna).
Na casa de Roseana e Juan tudo nos convida à poesia, assim a anfitriã inaugurou aquela edição com a leitura de seu poema “Gaiola”, extraído do livro Falando de pássaros e gatos (Editora Paulus):
de agora em diante
de trás pra frente
e para sempre
nenhuma gaiola amarre
as asas de um pássaro
os passos de um felino
os sonhos de um homem
O silêncio que se seguiu à escuta do poema parecia dizer: Amém!
A atividade seguinte consistiu na leitura do conto “O caso do papagaio Zé Augusto”, do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, em seu livro Contos e crônicas para ler na escola. Foi alegre a recepção do texto hilário, que fez, por exemplo, Evelyn Kligerman, convidada sempre especial de todas as Rodas de Leitura, lembrar-se do que presenciou em praça na Cidade do México, onde o machismo dos mexicanos era medido pela carga de voltagem de choque que cada homem, que se apresentava para o espetáculo, conseguia suportar: o papagaio Zé Augusto adorava tomar choques elétricos, assim como os hombres do México exibem sua força viril por agüentarem fortes choques.
Dando continuidade, houve a leitura, em jogral, do conto “O jardim dos gatos obstinados”, do livro Marcovaldo (1963), de Italo Calvino (1923-1985). Antes, porém, do texto, Juan Arias , que conheceu e entrevistou a Italo Calvino, falou um pouco sobre o escritor italiano, que detestava entrevistas e vivia recluso em Milão, observando, com terrível ironia, as cidades, visíveis e invisíveis. Juan referiu, ainda, a curiosidade do leitor com relação ao autor: quem está por trás do texto? Como o leitor imagina Roseana Murray, que abre as portas de sua casa para seus leitores? O jornalista de El Pais, mais importante periódico da Espanha, informou, ainda, que, na Antigüidade, uma folha de papiro custava 100 bois; tal ato deve nos fazer pensar na nossa felicidade de podermos ler e escrever sem termos que fazer troca de bovinos.
Com o subtítulo de “as estações na cidade”, Marcovaldo remete às quatro estações, em que se passam as fábulas, tendo, sempre, como protagonista a Marcovaldo, um sujeito ingênuo, criativo, sensível, bufão, melancólico, felliniano, diria eu, um Carlitos chapliniano. Na elaboração de suas estórias, Calvino trama a linguagem numa rede tão fina que quase esgarça a própria linguagem.
Foi tão emocionante a leitura do conto que um dos comentários, entre vários – “parece um desenho animado”, “o narrador nos mostra, com signos verbais, as 1001 realidades de toda cidade”, “vemos a cidade pelos olhos dos gatos” - feito por uma menina, identificava Marcovaldo com os gatos, recriando, portanto, a narrativa no sentido de o narrador metamorfoseasse no felino, num dos felinos milaneses. Por obra e arte de uma leitorinha, a figura de retórica “antropomorfismo” virava-se do avesso. De minha parte, vi o tempo todo os gatos de Roma, cidade onde morei e estudei e em que os gatos, ocupando celebérrimas ruínas, fazem parte da mitologia da cidade.
Com o gostoso lanche - pães doces, café, chocolate, bolo -, que foi servido aos convivas, fui observando as reações dos alunos e dos professores e o que mais me marcou foi a alegria de todos, bem como a festa que faziam em torno de Roseana Murray, tornada, naquela manhã luminosa, uma real celebridade, porque fotografada o tempo todo e solicitada para autógrafos. Até parecia – pensava eu – que a platéia adivinhara, inconscientemente, que nossa doce anfitriã vivia pesado luto por sua mãe, enterrada no “dia das mães”, e necessitava de afetos.
As várias edições das Rodas de Leitura têm-se revelado, não somente como uma tomada de consciência, por parte da comunidade saquaremense, quanto à importância da leitura, na formação do cidadão, quanto lugar propício ao desenvolvimento dos afetos; aliás, a arte tem esse condão de unir amorosamente. E a poesia de Roseana Murray, que abre seu coração e sua casa aos leitores, tem sido catalisadora de imensos afetos.
Vi um documentário sobre as usinas nucleares no Canadá, é apavorante o risco que as usinas oferecem. Já havia visto um sobre as usinas na Alemanha. Uma temeridade. Muito silêncio cerca o assunto, mas seria necessário expor a população a um desastre nuclear?