quinta-feira, 31 de maio de 2012

JARAGUÁ DO SUL E FACEBOOK

Voltei. Levei para Jaraguá do Sul uma bagagem de frio. Acho que fiquei com a imagem, a lembrança do frio que passei ano passado em São Bento. Mas... fazia trinta e cinco graus! não olhei na internet e fui rumo a um frio que não existiu.
O encontro com quase 500 crianças foi maravilhoso, crianças leitoras! Atentas, confortáveis, à vontade, participaram de todos os poemas, de todas as brincadeiras.E fazia muito calor, mas era uma energia tão linda que ninguém ligava.
Silvane, minha amiga querida, diretora da E.M.Hermann Muller de Joinville foi ao meu encontro com a Silvia, sua irmã e Kelly, professora da escola. Sempre cheia de novidades maravilhosas!
Conheci o Ovídio, que foi o mediador do encontro, ele organiza a Off-Flip em Paraty e é uma linda pessoa, filósofo e escritor. Reencontrei Carlos Shroeder que foi quem me levou e conheci o João, figura doce e calma, que me buscava e levava para lá e para cá.
Depois do encontro, já no hotel, exausta, me sentei com o Ovídio no saguão envidraçado, numa mesa redonda com uma vista magnífica para um prado, um rio. E de repente lá estava uma bela capivara comendo a grama com seus olhos ternos e um pelo convidativo, fiquei louca para passar a mão! Tranquila, nos olhava sem medo nenhum e fez jorrar dentro de mim rios de alegria.

Fui expulsa do meu facebook, dizem, por motivos de segurança. Devo mesmo ter cara de terrorista, pois apito nos aeroportos, fico presa na porta do banco, etc. Talvez seja porque mulheres poetas são perigosas.
Tento reconhecer as fotos que eles colocam para que eu possa ser readmitida e me sinto desconfortável como num vestibular: erro muitas e não sou readmitida. Quem sabe um dia volto...

segunda-feira, 28 de maio de 2012

JARAGUÁ DO SUL

Hoje estou indo para Jaraguá do Sul. Estou radiante pois vou encontrar a minha amiga Silvane, diretora da E.M Hermann Muller de Joinville. Moramos tão longe uma da outra , mas a vida vai fazendo com que nos encontremos sempre. A sua escola é um projeto tão magnífico que quarta-feira ela irá ao Rio gravar uma entrevista para o Canal Futura. Em Jaraguá vou falar de poesia, leitores, da vida.Deve estar muito frio na serra de Santa Catarina!

Ontem vi um dos filmes mais belos da minha vida, presente da Angela para o Clube de Leitura. O filme foi sorteado durante o almoço e Samuel, meu caseiro, ganhou o filme e me emprestou.
TARDES COM MARGUERITTE de Jean Becker, com Gérard Depardieu e Gisèle Casadesus é uma obra prima desde o primeiro segundo até o último. Uma obra prima de delicadeza, amor, esperança no ser humano. E para quem ama literatura é absolutamente imperdível. Recomendo com todas as minhas fibras, músculos, alma e sangue. Além disso a senhora é igualzinha a minha mãe na sua maneira de se vestir e de andar. Minha mãe era modista e o que é a poesia para mim, eram os tecidos para ela, as cores, as formas, as linhas. Terminei de ler um livro belo: El Tiempo entre Costuras, de Maria Dueñas, a história de uma modista na II Guerra e o livro também trouxe minha mãe de volta e o momento feliz em que, criança, eu a acompanhava até as lojas de tecidos.

Maria Clara, leitora do nosso Clube, me manda um poema que escreveu a partir do livro A Trégua, do Primo Levi. É belo:

O judeu errante

 Todo judeu vivo

reza à sorte de ter sobrevivido

a um campo de concentração.

Essa alegria triste os perfilia.


Alvo ambulante,

setas em sua direção apontam:

ali vai um judeu errante pela Terra,

carregado de estrelas.

Entre o solidéu e o solilóquio,

fia as tranças.


 Um judeu não anda nu

- a não ser para a morte.


E se preparam tanto,

são tantas guerras pretextadas,

e bombas pelo interior dos templos implodindo,

que penso nos meninos:


Se lhe dessem por um par de horas o globo,

marcavam um amistoso e jogavam bola.


E as meninas,:


Lhe dessem glebas, de manhã cedinho,

desarmavam a chave da luz elétrica,

arrancavam cercas,

e iam brincar na casa da vizinha.


E no conserto de um desenho novo

no deserto de chão arenoso

(se há jardins milagrosos que por lá vingaram...)

poderiam afinal encontrar-se

sobre a terra dos túmulos de comuns ancestrais.


Todo judeu sobre a Terra erra

ou sonha com liberdade.

-        Pra quando

                      o final da guerra?

Maria Clara


Acho que não terei tempo de escrever lá em Jaraguá. Até quinta!


domingo, 27 de maio de 2012

ENCONTRO DO CLUBE DE LEITURA DA CASA AMARELA

TEAR:

Com fios de pensamento
se tece o mundo
se costuram pedaços
rasgados de vida,
nesse tear estranho
que só o homem possui:
tear de sonhos.

in Residência no Ar, ed. Paulus, Roseana Murray, aquarelas Evelyn Kligerman

Nós, crianças, rogamos-Lhe,
nosso Deus, criador do mundo:
conceda-nos uma vida delicada e pura
e cultive em nós a bondade.

Epígrafe do livro O Sobrevivente, Memórias de um brasileiro que escapou de Auschwitz, Ed.Record

Ontem o encontro do nosso Clube de Leitura da Casa Amarela para discutir o livro A TRÉGUA do Primo Levi foi diferente de tudo o que eu havia imaginado. Praticamente não pudemos discutir o livro, mal conseguimos nos aproximar dele, pois Angela, uma das leitoras do Clube trouxe como testemunha o Sr.Aleksander Henryk Laks com seu livro O Sobrevivente. A realidade explodiu a ficção.  Aleksander foi prisioneiro de Auschwitz, escapou, veio para o Brasil, se naturalizou brasileiro e vive para contar. Ao contrário do que se poderia imaginar, é um homem alegre, cheio de vida, emotivo, sorridente e nos conquistou a todos, além do seu humor judaico. Em várias ocasiões ele desmentiu o Primo Levi, pois A Trégua é um livro filtrado, literatura e realmente não nos importa o que ali é verdade ou não, nos importa como o livro está escrito.
O Sr. Aleksander nos contou. Respondeu a muitas, muitas perguntas. Nos falou da fome, imensa, indescritível, algo com que ninguém que não tenha sido prisioneiro de Campo, vivido a guerra pode imaginar. O Sr. Aleksander nos contou. E foi muito impactante ouvir. estávamos todos na beira do abismo da emoção, quase todos com um nó na garganta.  Hector, novo membro do Clube, trouxe um artigo sobre o antissemitismo hoje no mundo, previu uma nova Hecatombe, um futuro Holocausto e nos falou da sua descrença em tudo. Mas a epígrafe do livro (já comecei a ler, estou na metade e é muito forte e muito bem escrito)  do livro O Sobrevivente nos fala da bondade e não da maldade. No livro A Trégua , encontramos dentro das relações humanas, que é a base do livro, a bondade espalhada como fina poeira luminosa dentro do horror. No livro A Escritura e a Vida, Jorge Semprún nos fala da bondade quando um homem, prisioneiro alemão comunista , troca a sua profissão de estudante de filosofia pela de estucador: provavelmente ali sua vida foi salva. Não acredito em nenhuma repetição do passado. Acredito que um dia o mundo descobrirá a paz e a bondade será a partitura do mundo. A presença luminosa do Sr. Aleksander que depois de ter passado cinco anos comendo 200 calorias por dia, ficou vivo para contar, para que o passado não se repita, nos deixou a todos completamente emocionados. E esperançosos.
Francisco leu um poema que escreveu a partir da Trégua. Felipe estava felicíssimo de namorada nova, apaixonado e nos leu, maravilhosamente Pasárgada, do Bandeira, para que cada um construa a sua Pasárgada possível. Maria Clara também leu um novo poema. Juan perguntou ao Sr. Aleksander sobre a história do Padre Kolbe, que morreu em Auschwitz no lugar de um homem e o Sr. Aleksander disse que isso seria totalmente impossível, que ele não acreditava.
Durante o almoço Angela tocou violão e todos cantamos a música "Para não dizer que não falei de flores" , do Vandré, todos cantamos juntos. O Sr. Aleksander se apaixonou pelo meu pão e só queria comer o pão! Tomou proseco, riu, se divertiu, nos seduziu. Minhas duas pastas, a de beringela e de gorgonzola fizeram sucesso.
Messias, nosso médico e amigo-irmão, foi nosso grande ausente, pois às nove horas da manhã me telefonou dizendo que não poderia vir, estava com febre . Eu havia feito um bolo de aniversário para ele, mas cantamos parabéns e ele ouviu pelo telefone.
Fernando e Hélio , emocionadíssimos, nos disseram da oportunidade única de conhecer um sobrevivente de um Campo de Concentração. Dentro de muito pouco tempo , já não haverá mais nenhum sobrevivente vivo para contar com a sua própria voz.
Póximo encontro dia 21 de julho. Livros: O Amante, Marguerite Duras e o conto Os Mortos, do James Joyce. Um poema do Drummond, cada um escolha o seu.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Lembranças

Enquanto faço a lista do que tenho que comprar para o almoço de amanhã do Clube de Leitura da Casa Amarela, agora que já voltei para a minha alimentação frugal de frutas, peixes e verduras, relembro as comidas maravilhosas que comi em Veneza.
Na primeira noite, a noite em que chegamos , comemos uma salada caprese e um risoto de frutos do mar , inesquecível.
Em Murano comi uma pasta com lula e sua tinta. No Al Conte Pescaor comemos flores de abóbora recheadas com algumas delicadezas da lagoa.
Pasta negra com verduras. Pasta a la Carbonara. Pasta com isso e aquilo. Pedaços de pizza na rua. Frutos do mar fritos. Lazanha com creme de flores da abóbora.
Fora os vinhos, as sobremesas fantásticas, os pães com azeite. Todos estes aromas passeiam por minha memória junto com os belos ruídos de veneza.
Então amanhã tenho que caprichar na cozinha, e já começo hoje, pois em nossa mesa da varanda teremos os leitores da Casa Amarela e todos eles são muito especiais.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

DIÁRIO DA MONTANHA EM VISCONDE DE MAUÁ

Estou preparando o lançamento do Diário da Montanha com muito esmero. Ontem contratei os músicos: Bernardino Guterres Lopes, violino e Gustavo Gama, violão. Eles foram indicadíssimos pelo Henrique, grande conhecedor, dono da Pousada Terra da Luz . O livro sai a qualquer hora da gráfica. O atelier de cerâmica da Evelyn e do Luis, que finalmente está completamente pronto com forno a gás e tudo, será um pouco modificado para a festa, e ficará com a lareira acesa. Estará muito frio no dia 25 de junho. Nos aqueceremos com o fogo e o calor dos corpos e das vozes (do vinho tinto também) .Este lançamento para mim é mais do que o lançamento de um livro: é uma celebração.
Celebro muitas coisas, antes de tudo, estar viva. Celebro a vida. Celebro a memória da minha mãe e dos meus antepassados que estão no livro. Celebro a confiança da Bia Hetzel e Silvia Negreiro, minhas editoras da Manati que abraçaram o livro e acreditaram na sua força quando ainda era um caderno com poemas escrito a mão. Celebro a amizade , o amor do Juan, todos os amigos , presentes, ausentes, longe, perto, eles são a minha âncora. Visconde de Mauá foi onde nasceu a minha poesia. Ela se alimentou das suas águas e matas. Aí escrevi meus primeiros poemas. E celebro a minha casinha minúscula, escondida dentro da floresta onde me encontro com o mais secreto de mim, idéia do meu filho André Murray e da minha nora Dani Keiko, de reformar uma casinha de caseiro em ruínas , até transformá-la num conto de fadas.
Todos estão convidados.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

CASAS

Recebo mais uma edição do meu livro CASAS que sai como pão do forno.A editora diz que é a quarta tiragem da nona edição e eu não sei o que quer dizer isso. Só sei que os poemas do livro viajam por todo o Brasil. Hoje mesmo uma escola me escreve contando que os alunos fizeram uns decalques maravilhosos sobre um dos poemas do livro. É um livro muito antigo e sei direitinho como aconteceu dentro de mim. Foi em 1994. Eu estava me separando e teria que mudar de casa. Pensei então em todos os tipos de casa,  fiz uma lista, casa de amigo, de avó, casa mal-assombrada, etc.E comecei a fabricar os poemas. E um dos poemas era como um recado que eu me mandava:

MUDANÇA
Mudar de casa
é coisa
muito complicada,
porque uma casa
não cabe
em outra casa:
sempre fica faltando,
sempre fica sobrando.

O caminhão de mudanças,
bicho cruel,
engole mesas, cadeiras, lembranças,
e lá se vai mundo abaixo.

Na casa nova o caminhão
despeja
mesas, cadeiras, lembranças,

e a casa vai criando asas,
criando vida,
já se pode forrar o teto
de sonhos.

E em quantas casas morei depois do livro pronto! Em cada uma forrei tetos e paredes de sonhos.

terça-feira, 22 de maio de 2012

EM CASA

Chegamos ontem à noite em casa e a viagem Madrid - Saquarema cansa muito. Cheguei exausta. Nana , nossa gata, dava pulos de felicidade e Luna, a persa, ficou de mal comigo (ainda está de mal, como ousei abandoná-la?)
Toneladas de correspondências atrasadas, contratos, notas fiscais, papeladas que durante horas me soterraram, mas da minha janela vejo as montanhas, as gaivotas voando e o silêncio da casa, atravessado pelo mar, é restaurador.
Hoje tive uma das grandes emoções da minha vida: André, meu filho Chef de cozinha, gravou um programa para a TV Rio Sul para o Dia das Mães e só vi hoje. É tão bonito que eu não sabia o que fazer com a minha felicidade. O vídeo está no meu site em Poemas Animados.
E já começo a preparar o menú para o almoço de sábado do nosso Clube de Leitura da Casa Amarela. Farei duas pastas , pois Primo Levi, nosso autor, era italiano e eu acabo de voltar de Veneza. Aliás, dois quilos e meio mais gorda por tudo o que comi! Mas valeu a pena.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

DORSODURO

Ao virar uma esquina depois da Accademia, os turistas desaparecm e começo Dorsoduro, um bairro belíssimo, cheio de pontes e praças e muita vida sem os grupos imensos atravancando o caminho. Vimos uma feira de peixes e frutas e legumes ao ar livre numa praça e as gaivotas faziam uma festa com o resto de peixe que os peixeiros lhes davam.
Comemos numa cantina linda, a AnticaLocanda Montin. Comida inesquecível. Juan diz que se lembra da cena de um filme gravado aí, mas não se lembra do filme.
Há que guardar todo este cenário dentro da retina  para levar, enrolado debaixo da pele, como uma tapeçaria.

GIUDECCA

Ontem passamos boa parte do dia na Giudecca, que deve ter sido o lugar onde os judeus moravam na Idade Média antes de serem transferidos para o Gueto. A vista de Veneza da Giudecca é magnífica e o bairro sem os palácios e toda a riqueza que existe no outro lado, é lindo. Aí existe uma vida verdadeira, com venezianos morando, comprando em suas peixarias tão belamente arrumadas que os peixes parecem jóias. Prevalece o tijolo vermelho e seus jardins estavam todos floridos, é primavera.
No final da tarde fomos para a Praça São Marcos, vimos cair a última gota de luz no canal e os grupos que os navios despejam todos os dias na praça como se tivessem aberto um formigueiro já haviam partido. A praça era de quem dorme em Veneza. As gôndolas cobertas , sombras na água escura, faziam música com seu movimento. Caminhávamos já com uma certa nostalgia, avaros de nossas últimas horas, pois amanhã muito cedo partimos para Madrid.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

ENCONTRO NUM CAFÉ

Ontem choveu muito de manhã e a temperatura caiu muito também. Quando a chuva parou lá pelas 13hs fomos para a rua mas o vento era cortante, o frio intenso, então andávamos um pouco e logo entrávamos num café para nos aquecer.
Entramos num café superlotado perto da Accademia. Encontramos uma mesa espremidinha e nos sentamos. Depois da operação tira casaco e cachecol comentei com o Juan: _Nossa, o Café está cheíssimo! Um garçom que passava por nossa mesa, sem parar, disse, andando: _É sempre assim.
Era uma correria de garçons para lá e para cá. Não era ele quem nos servia, mas cada vez que passava pela nossa mesa dizia uma frase em português. Sabendo que ele estava desesperado para falar, nós o chamamos quando passava para fechar a nossa conta. Ele trouxe a conta e perguntou: _ De onde são vocês? E ele tinha três minutos para nos contar que era de Natal, que não aguentava de tanta saudade do Brasil e que não estava feliz.Nos desejou uma boa estadia. Queríamos perguntar por que então estava em Veneza, como veio parar aqui, qual era a sua história, mas ele já havia desaparecido, correndo com uma bandeja, para lá e para cá.
À noite jantamos num restaurante magnífico, "Il Giglio". Ao lado da nossa mesa um casal de franceses falava baixinho com a jarra de vinho já terminando. Foram embora e dois senhores americanos se sentaram. Falavam alto, quase gritavam, como dizem os italianos, sem nenhuma elegância. Um deles pediu uma sopa de peixe e veio um prato maravilhoso, com lagosta, camarões, mariscos levemente mergulhados num caldo que se adivinhava saborisíssimo. O americano olhou para a sua sopa com repugnância e chamou o garçom aos berros. Disse que aquilo não era uma sopa. O garçom disse que sentia muito mas que naquele restaurante aquilo era uma sopa de peixe. O americano ia tirando todas aquelas maravilhas e colocando num prato ao lado. Só tomou o caldo. Sem nenhuma elegância!!!
Hoje vamos para a Giudecca, o dia está belíssimo, no céu nenhuma nuvem, vamos deslizar por aí.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

FONDAMENTE NUOVE

Hoje os gondoleiros não podem trabalhar. Chove e faz muito frio.
Ontem passamos boa parte do dia em Fondamente Nuove, um bairro lindíssimo de Veneza onde chegam poucos turistas, onde não há lojas, pouquíssimos restaurantes, uma Veneza menos teatral, mais verdadeira. Aí viveu Casanova. Um gondoleiro nos mostrou o seu palácio e nos disse que até hoje se conserva a sua cama, para onde levava as suas amantes. Hoje o palácio pertence a um conde.
É um bairro muito antigo , medieval, mas foi reconstruído no século XVIII, pois havia sido devastado por um temporal. A beleza das suas praças e ruelas, dos canais , dá vontade de chorar. Há um silêncio que vai se desdobrando como um leque. Fomos caminhando desde São Marcos até lá e como num passe de mágica, ao virar uma rua, a multidão desapareceu e já começava Fundamente Nuove. Desembocamos numa pequena praça "Campiello Widman", com um restaurante precioso, algumas mesas lindas na calçada. Reservamos um lugar e fomos descobrir o bairro. Vimos um mercadinho de peixe que era a coisa mais linda, como o peixeiro arrumou a sua mercadoria na calçada, entremeando os peixes e crustáceos com frutas e flores! O sentido da beleza na Itália é primordial, é como o ar que se respira.
Passeamos pelos inúmeros canais, vimos praças maravilhosas.
Joseph Brodsky, o grande poeta russo, Prêmio Nobel,  num inverno longínquo, também almoçou em Fundamente Nuove:
" Eu havia acabado de almoçar em alguma pequena trattoria, na parte mais afastada das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrafa de vinho..."
Na hora marcada voltamos para o restaurante Ostaria Boccadoro. Na verdade estávamos quase sozinhos, havia apenas um casal jovem com um menino de 5 anos. Era o dono do restaurante quem servia. Ele nos indicou um vinho maravilhoso, Ronchedone Cá Dei Fratti, uma vinícola do Vêneto que funciona desde 1782.
Pedimos uma pasta negra com algumas delicadezas da lagoa, era indescritível e uma travessa de frutos do mar fritos, verdadeira maravilha, vinham levemente empanados, até os mariscos e caranguejos inteiros e macios.
Conversamos com o casal sobre a crise e os italianos estão menos deprimidos e mais otimistas do que os espanhóis, conversamos com o dono do restaurante sobre a política italiana e ele nos falou do alívio por não estar mais o Berlusconi, principalmente disse ele, por sua "falta de elegância" que para os italianos é um pecado capital.
Fizemos o caminho de volta flutuando, quase como se estivéssemos num tapete voador.

terça-feira, 15 de maio de 2012

AS MÁQUINAS DE LEONARDO

Ontem saímos pela manhã em direção a Rialto, mas por dentro. A vista de cima da ponte é o cartão postal mais conhecido de Veneza. Continuamos por dentro em direção a Ferrovia. Chegamos no Campo San Polo e nos sentamos num banco cheio de velhinhas venezianas. Na praça se contava os turistas nos dedos, éramos pouquíssimos, a praça era das crianças, dos velhos e dos cachorros. Uma delícia ouvir as velhinhas conversando e gesticulando . Um africano veio oferecer algumas coisas para as velhinhas tão bem vestidas e elas se recusaram a comprar. O africano pediu ajuda e elas responderam : _"Filho, estamos todos na mesma situação. A crise é de todos". Enquanto caminhamos por estas maravilhosas ruas e pontes a Europa afunda numa crise assustadora e sem precedentes. Aliás, sim, houve uma crise parecida e todos conhecemos o seu desfecho. A Europa , com todas as suas maravilhas e tesouros, terá que encontrar uma saída.
Entramos na Igreja de San Paolo, cuja fundação data do século IX. Tintoreto e Tiepolo com suas cores sombrias me deprimem um pouco, me lembram a intolerância da Igreja, não sei porque, já que as pinturas são uma verdadeira maravilha.
Saímos e logo, ao virar uma esquina caimos numa outra praça e na Igreja havia uma exposição das máquinas do Leonardo Da Vinci. Que maravilha!!! Para cada desenho de uma das máquinas, fabricaram a máquina tal e qual com a cópia do manuscrito ao lado. E Leonardo inventou a asa delta, a bicicleta, o helicóptero, gruas, máquinas de guerra , barcos, a idéia da escada rolante... Era impactante demais a exposição.
Paramos num restaurante enoteca na beira de um pequeno canal e comemos uma salada com uma taça de vinho. Eram apenas três mesinhas na rua e um jarro de flores em cada uma  .

À noite fomos jantar  num restaurante indicado no livro 1000 Dias em Veneza, "Al Conte Pescaor", ao lado da Praça San Marco. É uma cantina simples de comida maravilhosa. E quando voltamos já Veneza quase dormia, as gôndolas cobertas , apenas sombras oscilando na água.
 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

OS AFRICANOS E AS BOLSAS

Nosso hotel fica entre a Praça São Marcos e a Academia. Indo e voltando, de um lugar para o outro, encontramos os africanos vendendo bolsas falsificadas, a qualquer hora do dia e da noite. A noite aqui termina cedo, às 23hs já está tudo fechado. De pé o dia inteiro, faça chuva ou faça sol, lá estão os africanos como belas estátuas de ônix e são tão delicados quando oferecem as suas bolsas. Eu compraria todas para que pudessem voltar para casa felizes. Para que pudessem voltar para a África.

Ontem vimos a bela exposição do Gustav Klimt no Museu Correr que é um palácio deslumbrante. Depois vimos uma exposição de instrumentos musicais antigos, o mais novo tinha 300 anos, violinos, alaúdes, violas da gamba, oboés, cravos e outros instrumentos estranhos , adormecidos em belas vitrines dentro de uma igreja. Certamente suspiravam por seus músicos que hoje, tanto tempo depois, habitam as estrelas.

E andamos dentro do frio, para lá e para cá, andamos e andamos, subimos escadas, descemos escadas até terminar a noite dançando na Praça São Marcos.

domingo, 13 de maio de 2012

TORCELLO

Ontem mudamos o programa na última hora e fomos a Torcello, o que deveríamos ter feito junto com a visita a Burano, mas como estávamos exaustos não fomos. E Juan queria que eu conhecesse a imperdível Catedral de Torcello que data de 639. Sendo assim, encaramos a longa viagem, a troca de barcos, para chegar a Torcello.
A ilha é uma pequena jóia  de beleza e paz. Pisar o chão de  uma Catedral de 1.500 anos , pousar os olhos em seus maravilhosos afrescos vale qualquer viagem. Leio que Torcello foi a primeira ilha habitada de Veneza e realmente ai encontramos muitos restos romanos:

"Possuia já habitações desde os séculos V / VII. Torcello serviu de refúgio para os cidadãos da cidade de Altino pelo motivo das invasões dos unos e dos longobardos. O nome da ilha provavelmente deriva de TURRICELLUM (a torrezinha erigida em lembrança àquela da cidade perdida de origem). Em 638 o bispo de Altino tranferiu para Torcello algumas sagradas relíquias e por este motivo a sua história  continuou a existir até a queda da República. Teve governo autônomo, com Podestade e Consiglio,corpo coletivo superior; ali existia a indústria da lã.

Após um passeio entre os silenciosos canais principais,  unidos pela conhecida Ponte del Diavolo (Ponte do Diabo), em meio aos canaviais e casas tipicamente vênetas, se chega ao coração da ilha, a sua pequena praça."

Ontem anunciavam uma tempestade para as 23hs. Fizemos as contas e dava tempo de jantar ao ar livre na Academmia, na beira do canal, com Chianti e luz de velas. Chegamos junto com as últimas luzes do entardecer e aqui cometo o pecado da gula todos os dias. Não há lugar mais belo para pecar. Por enquanto ainda estou cabendo nas minhas roupas.

A tempestade caiu pontualmente, mas já havíamos chegado ao hotel e hoje cedo chovia muito e fazia um frio terrível depois de tantos dias de calor. Mas agora a chuva já está diminuindo e vamos para a rua de capa e guarda-chuva.

sábado, 12 de maio de 2012

BURANO

Ontem passamos o dia quase inteiro em Burano. É uma pequena ilha feita de rendas, cores, irrealidade.
São casinhas minúsculas, lindas, de todas as cores  vibrantes que se possa imaginar. Parece que caminhamos dentro de um quadro naif. Desde muitos séculos as rendeiras tecem maravilhosos bordados e rendas. Os canais, minúsculos como as casinhas, fazem sinuosos desenhos. Caminhamos a ilha inteira e poderíamos ficar aí por muito tempo, lendo, escrevendo. Não dá vontade de ir embora. Nos sentamos no restaurante mais antigo de Burano, há quatro gerações a mesma família cozinha. Em 1920  o restaurante se mudou para esta casa onde almoçamos e aí funciona até hoje. O azeite é fabricado também por uma família desde 1580, lemos no rótulo, mas nestas paragens o tempo se mede por séculos.
Hoje sim iremos ver uma grande exposição de Klimt, estou esperando o museu abrir. E depois andar para dentro, para longe da multidão , dos grupos imensos e dos camelôs que tanto estragam Veneza.
Por dentro há uma Veneza vazia e é por aí que hoje caminharemos, ao léu, nos perderemos.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

SINOS

Acordo em Veneza com os sinos. Debaixo da nossa janela passam gôndolas. O corpo quase explode com tanta beleza.
Ontem passamos metade do dia em Murano, uma Veneza sem o luxo dos palácios. Fomos nos adentrando e que linda é Murano em seu interior. Encontramos, no Campo San Bernardo uma Osteria cheia de venezianos, trabalhadores, gondoleiros, gente do povo e aí almoçamos comida simples e maravilhosa, uma jarra de vinho da casa e por um momento a sensação de pertencermos a este lugar.
No final da tarde fomos para os lados da Academia e vimos um belíssimo entardecer, vimos a luz desaparecer no Canal , a Giudecca se iluminar do outro lado da água.  Andamos até gastar os pés.
Hoje vamos ver duas exposições e talvez algum Palácio. Os dias estão azuis, perfeitos.  

quinta-feira, 10 de maio de 2012

MADRID-VENEZA

Tenho laços profundos com Madrid , pois em 1998 morei na Calle Arquitecto Gaudí com o Juan e era o começo de uma linda história de amor. Juan trabalhava o dia inteiro no jornal e eu ficava sozinha . Muitas e muitas vezes tomava o ônibus 52 passava horas no Café do Oriente vendo a vida passar, com o Palácio Real ao fundo.
Quando volto a Madrid sempre quero me hospedar aí, na Praça da Ópera, ao lado do Palácio Real, perto da Porta do Sol. Estivemos apenas uma tarde em Madrid e percorremos os lugares amados. Para quem chega de fora, para o turista, a crise não aparece. A primavera explodia em luz e eu me sentia, sentada no Café do Oriente, dentro de um filme.
Ontem gastamos o dia inteiro para chegar a Veneza, pois nosso voo fazia conexão em Roma e depois mais uma hora de barco até o hotel. Também precisamos trocar de barco.
O hotel fica em Giglio e o lugar é uma preciosidade. Está perto da Praça San Marco, mas afastado do burburinho. É a terceira vez que venho a Veneza e é sempre um sonho.Estou dentro de uma imensa e feérica aquarela.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

LEITORES

O maior prêmio para um poeta, um escritor, é ser lido. Maior do que qualquer prêmio é um leitor, muito tempo depois, ainda carregar o poema em sua pele.
Hoje , antes de sair para o aeroporto, recebo uma dádiva: um antropólogo que foi ao meu encontro em Bogotá, por ter ouvido a minha entrevista na Rádio Caracol, me escreveu pedindo que eu enviasse um poema do livro Desertos que fiz com o Roger Mello. Eu havia lido o poema e ele o guardou no coração:

Dezessete


Sorri a mulher por trás do véu?

Sussura palavras ou flores

desconhecidas?

O rosto que se esconde, lua oculta,

será indecifrável como a escrita

do vento nas dunas?



Na bolsa a mulher carrega

um lenço de seda azul,

um bilhete escrito em preciosa

caligrafia,

três moedas antigas

como três sonhos.





domingo, 6 de maio de 2012

MADRID E VENEZA

Amanhã vamos para Madrid e seguimos no dia seguinte para Veneza.
Juan escolheu Veneza , de quem quase foi Cônsul Honorário, para comemorar os seus oitenta anos. Juan é uma biblioteca de histórias e não me canso de ouvi-lo. Ontem veio a Globonews aqui em casa entrevistá-lo para o programa Clube de Correspondentes que irá ao ar em julho. Leila Sterenberg , divina, criou um clima fantástico durante a entrevista.  As histórias do Juan, ao longo de quase cinquenta anos de jornalismo são tão fantásticas que parecem inverossímeis. Juan trabalha umas dez horas por dia, no mínimo. Não parece verdade que ele vai parar alguns dias.
Veneza não é real. É um teatro, é um sonho. Com chuva, com sol, com bruma, suas águas nos enfeitiçam e aí ficamos, aprisionados para sempre. Como num labirinto:

" Assim, você nunca sabe, enquanto se move por esses labirintos, se está perseguindo um objetivo ou fugindo de si mesmo, se você é o caçador ou sua presa."

in Marca D'Água, Joseph Brodsky, ed. Cosacnayfi

sábado, 5 de maio de 2012

ACHADOS E PERDIDOS

Não sei vocês, mas eu vou perdendo tudo, canetas, livros, brincos, pulseiras, xales. Em Bogotá perdi um lindíssimo xale negro que a Ieda de Oliveira me emprestou. Xale comprado em Paris. Chovia muito na saída da feira e sem guarda-chuva o xale emprestado foi meu abrigo. Nem a mágica palavra Paris conseguiu grudá-lo ao meu corpo: eu o deixei no táxi. Desolada, ontem, peguei o xale que mais amo e enviei por correio para a Ieda. Na minha última visita ao meu filho em Granada perdi as únicas jóias que tinha, que eu amava,presente de casamento do Juan, que foram encontradas na casa, dentro do armário do meu neto, um ano depois. Não sei o nome disso.

A primeira vez que ouvi um poema do Carlos Pena Filho, foi em Olinda, nos anos noventa, na voz da Elisa Lucinda e no poema, ele ia pintando tudo de azul. Fiquei perplexa com tanta beleza. Vrei uma estátua azul.
Agora leio no "Guia Prático da Cidade do Recife", que acho num canto da estante:
".........................................
Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar."
............................................

Porque também sou tecelã de poesia, amores, amizades, vida, este fragmento me toca especialmente.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

SILÊNCIO

Ontem assisti na TV 5 a um filme sobre a vida de Jorge Semprún, escritor que morreu no ano passado já com quase 90 anos. Espanhol Semprún chegou até as minhas mãos, meus olhos, meu coração, não sei como. Nunca sei como os livros aparecem magicamente na minha vida, a não ser os que busco. Ele foi prisioneiro de Buchenwald e do seu livro A Escritura ou a Vida, guardei duas passagens que me marcaram. Semprún era prisioneiro político e falava alemão. Não era judeu, era comunista. Ao entrar no Campo, ao dizer a sua profissão, declarou: estudante de filosofia. O alemão que anotava seus dados, também comunista e preso político lhe respondeu: isso não é uma profissão. Não vai servir aqui dentro. Ele insistiu. Sou estudante de filosofia e nada mais. O homem ficou em silêncio e datilografou. Trinta ou quarenta anos mais tarde, ele voltou a Buchenwald com os netos e uma equipe de televisão. A sua ficha de entrada foi resgatada. E no espaço reservado para profissão estava escrito: estucador. Uma palavra salvou a sua vida. A bondade anônima existe.
A outra passagem é belíssima. Semprún encontra seu professor de filosofia da Sorbonne no Campo, como ele preso político. Um dia seu professor contraiu tifo ou cólera, não lembro. Ele morria . Semprún estava ao seu lado. E como era ateu não podia dizer uma oração. Então recitou baixinho um poema de Baudelaire. Seu professor esboçou um sorriso e morreu. A poesia como oração.
Semprún demorou 30 anos para escrever seu livro. Um silêncio de 30 anos. Porque , diz ele, para viver precisava esquecer. Era uma escolha. Mas então , um dia, ele disse: a escrita E a vida.  

quinta-feira, 3 de maio de 2012

PREPARANDO O LANÇAMENTO

Devagarzinho vou preparando o lançamento do meu livro O DIÁRIO DA MONTANHA em Visconde de Mauá. Trocamos a data, agora definitiva: 25 DE JUNHO.
São pequenos e preciosos detalhes. O lançamento será feito no atelier de cerâmica\da minha irmã Evelyn Kligerman e Luis Mérigo. Estão sendo confeccionadas 50 lembranças em cerâmica, com o nome do livro.O atelier fica em Maringá-Minas, ao lado da loja da Edith e do Café Maringá.O atelier é deslumbrante e será o cenário perfeito para reunir amigos e desconhecidos. André, meu filho e Dani, minha nora, oferecerão um belíssimo coquetel. Estará muito frio, o lançamento será às 19hs e a lareira estará acesa. Estou buscando um violinista.
Já vi o livro , a sua "boneca" e está maravilhoso.
Mas antes do lançamento tanta coisa acontecerá. Segunda-feira, dia 7, embarco para Madrid. Em junho virá minha sobrinha Maria José, da Espanha, passar 15 dias em Saquarema. Enquanto isso, o Diário da Montanha está assando no forno, seus poemas que falam de tudo e de nada.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O FIO DA MEADA

Recebo a sexta edição do meu livro O FIO DA MEADA, da ed. Paulus. A história do livro é curiosa. Ele é muito antigo e saiu pela primeira vez pela editora Globinho que nem chegou a vender o livro porque fechou. Pinky Weiner fez belíssimas ilustrações que a editora perdeu. Mas a edição da Paulus tem lindas ilustrações da Elizabeth Teixeira. A  primeira edição saiu com uma palavra errada que estraga (para mim) a página inteira. Foi corrigido o erro na segunda edição. E agora, cinco edições depois , eis que o erro volta! Agora, novamente, terei que esperar a próxima edição para trocar a palavra.
Mas a página que vou reproduzir, a que introduz a história, está toda certinha:

"Pensamentos são rios viajantes. O tempo todo se enrolando, saindo e entrando, às vezes arrumadinhos, outras vezes sem pé nem cabeça. Como fios de um grande novelo. Tem gente que pensa poeticamente, outros só pensam de um jeito guerreiro, violento.
Pensamentos são como pássaros de todos os jeitos e cores. Saindo de uma caixa eternamente aberta. Tem pensamentos que mudam o mundo para melhor, outros estragam ainda mais este mundo" .- O fio da Meada, ed. Paulus.

Podemos melhorar a qualidade dos nossos pensamentos. É uma atividade trabalhosa e diária. Meditação ajuda, música, contemplação. Pensamentos obssessivos também são horríveis e atrapalham bastante a nossa vida, mas podemos substituir estes pensamentos por outros luminosos. 

terça-feira, 1 de maio de 2012

CHUVA

Fazia tempo que não chovia tanto em Saquarema nem tinhamos um sudoeste tão imenso revirando as árvores e a casa.
O grande poeta escritor Álvaro Mutis, colombiano, me oferece a sua maravilhosa, caudalosa poesia. Tento traduzir, faço o possível:

VISITA DA CHUVA

Chega de repente a chuva, instala suas hostes, minuciosos
guerreiros de seda e sonho.
   Salta alegre pelos telhados, desce pelos canais em precipitada algaravía;
   começa a grande festa das águas numa viagem que estabelece
seu transitório domínio
   E pela mão nos leva a regiões que o tempo havia
sepultado, parece, para sempre.
   alí nos esperam
a febre da infância,
a lenta convalescença nas tardes de um outono incessante,
os amores que se prometiam sem término,
os lutos na família,
os úmidos funerais no campo,
o trem detido diante do viaduto que a cheia arrastou,
os insetos zumbindo no vagão onde nos surpreendeu
a aurora,
as histórias de piratas cobiçosos, de malaios que degolan
em silêncio, de viagens ao Polo, de tormentas devastadoras e ilhas afortunadas;
nossos pais, jovens, muito mais jovens do que estamos agora,
que a chuva resgata de sua parda cinza sem idade, do seu calado
trabalho mineral
e irrompem vestidos de riso e gestos juvenis.
Que bendição a chuva, que intacta maravilha o seu passo
cheio de surpresa e bondade
   que nos preserva do esquecimento e da rotina sem memória.
Com que gozo transparente nos instalamos em seu império
de pálios vegetais
   e com quanta construída resignação a escutamos calar pausadamente, afastar-se e regressar por um instante
   até que nos abandona no meio de um silêencio lavado,
 de um âmbito recém inaugurado
   que invade o presente com suas turvas matérias
derrotadas, seu cortejo de pálidas convicções, de costumes
onde não cabe a esperança.
   Recordemos sempre esta visitada chuva. Fechados os
olhos, tratemos de evocar seu vozerío
   e assistamos de novo a vitória de suas hostes que,
   por um instante, derrotam a morte.

Álvaro Mutis, Poesía Reunida, ed. Contemporánea