Se você é um cronista sem ideias, tenha filhos.
Claro, há formas mais práticas, e mais baratas, de encontrar assunto para
uma crônica, mas essa é infalível.
Me lembro do poema de Oswald de
Andrade:
“Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi”
Minhas duas filhas, tão pequenas
ainda, me dão lições diárias de poesia. Recentemente escrevi aqui sobre a
expressão que Luísa, a caçula, deixou como mensagem de voz no meu celular: de saudade com você.
Hoje é a vez da Maria, que do
alto dos seus seis anos me apareceu dia desses com o mais novo verbo da língua
portuguesa. O verbo misteriar.
Muito recente, o vocábulo ainda não
entrou no dicionário. Mas deve constar em breve, talvez com a seguinte
definição:
Misteriar. [Do grego Mystérion, pelo latim Mysteriu, do marianês Misteriar e pronto] V. t.d. 1. Decifrar,
desvendar um mistério. “Pai, você jamais vai misteriar isso, pode esquecer.” 2.
Descobrir onde alguém (uma filha) se
esconde, ignorando os pés de fora, atrás da cortina. “Pai, você misteriou muito rápido, assim não
vale.”
Misteriar não é, portanto, como parece à primeira vista, criar, inventar
algum mistério. Foi esse, aliás, o sentido que atribuí ao novo verbo quando o
ouvi pela primeira vez. Não. Seria óbvio demais. Misteriar é justamente o
contrário!
Sherlock Holmes era um ótimo
misteriador. Fera na arte de misteriar, o Sherlock. Poirot misteriava usando
sua “massa cinzenta”, como gostava de dizer. Nos Estados Unidos da década de
30, época de Al Capone e companhia, o durão Sam Spade misteriava mais com a
intuição do que com o cérebro (misteriava com os punhos também, se necessário).
A verdadeira arte do detetive é
a arte de misteriar. Se o fizer bem, ganha a vida. Se errar, corre o risco de
não voltar para casa.
Os antigos navegadores
misteriavam rotas guiando-se pelas estrelas. Os modernos preferem o céu
virtual. Uns e outros navegam por mares desconhecidos, misteriando conforme
seus dotes, mestres, limites.
Todo leitor é, antes de mais
nada, um misteriador. Seguindo pistas, signos que insistem em mudar de lugar a
cada releitura, o leitor vai misteriando um poema, um romance, muitas vezes sem
se dar conta. A esse misteriar, que é sempre único, e que pode ser mais ou
menos difícil, divertido, doloroso, o leitor chama de prazer. E, se é de fato
um leitor, não pode viver sem ele.
Crianças misteriam livros de uma
forma muito particular. Podem segurá-los de cabeça para baixo, de trás para
frente, sem a mínima noção do que vai escrito ali. Mas nisso estão misteriando,
você pode ter certeza. E quando aprendem a ler, muitas vezes perdem a magia de
misteriar um objeto sem saber o que de mais valioso (supõe-se) há dentro dele,
misteriando apenas pelo olhar, pelo tato, se aproximando misteriosamente
daquele objeto de papel que os adultos guardam na estante.
Há misteriadores muito
inteligentes, com sólida formação no ofício. Alguns são tão bons que deixam
discípulos. Existem aqueles que estudam a vida inteira, dedicando décadas e
décadas de existência a perseguir um único mistério, que nem sempre conseguem
misteriar. Há misteriadores de todo tipo, em todas as áreas. Afinal,
parafraseando Drummond, o que pode uma criatura, entre outras criaturas, senão
misteriar?
Nenhum misteriador, no entanto, por mais esperto, talentoso ou genial que
seja, vai alcançar o que se passa de fato na cabeça de uma menina de seis anos
ao criar, como quem não quer nada, uma palavra nova, feita de pedaços de
palavras antigas, tão fresca e saborosa como uma frutinha que não existe.
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