terça-feira, 17 de janeiro de 2017

MISTERIAR

Recebo uma crônica maravilhosa do escritor e amigo Flávio Carneiro. Me apaixonei, então divido com vocês .

                Se você é um cronista sem ideias, tenha filhos.
Claro, há formas mais práticas, e mais baratas, de encontrar assunto para uma crônica, mas essa é infalível.
                Me lembro do poema de Oswald de Andrade:
“Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi”
                Minhas duas filhas, tão pequenas ainda, me dão lições diárias de poesia. Recentemente escrevi aqui sobre a expressão que Luísa, a caçula, deixou como mensagem de voz no meu celular: de saudade com você.
                Hoje é a vez da Maria, que do alto dos seus seis anos me apareceu dia desses com o mais novo verbo da língua portuguesa. O verbo misteriar.
                Muito recente, o vocábulo ainda não entrou no dicionário. Mas deve constar em breve, talvez com a seguinte definição:
                Misteriar. [Do grego Mystérion, pelo latim Mysteriu, do marianês Misteriar e pronto] V. t.d. 1. Decifrar, desvendar um mistério. “Pai, você jamais vai misteriar isso, pode esquecer.” 2.  Descobrir onde alguém (uma filha) se esconde, ignorando os pés de fora, atrás da cortina.  “Pai, você misteriou muito rápido, assim não vale.”
Misteriar não é, portanto, como parece à primeira vista, criar, inventar algum mistério. Foi esse, aliás, o sentido que atribuí ao novo verbo quando o ouvi pela primeira vez. Não. Seria óbvio demais. Misteriar é justamente o contrário!
                Sherlock Holmes era um ótimo misteriador. Fera na arte de misteriar, o Sherlock. Poirot misteriava usando sua “massa cinzenta”, como gostava de dizer. Nos Estados Unidos da década de 30, época de Al Capone e companhia, o durão Sam Spade misteriava mais com a intuição do que com o cérebro (misteriava com os punhos também, se necessário).
                A verdadeira arte do detetive é a arte de misteriar. Se o fizer bem, ganha a vida. Se errar, corre o risco de não voltar para casa.
                Os antigos navegadores misteriavam rotas guiando-se pelas estrelas. Os modernos preferem o céu virtual. Uns e outros navegam por mares desconhecidos, misteriando conforme seus dotes, mestres, limites.
                Todo leitor é, antes de mais nada, um misteriador. Seguindo pistas, signos que insistem em mudar de lugar a cada releitura, o leitor vai misteriando um poema, um romance, muitas vezes sem se dar conta. A esse misteriar, que é sempre único, e que pode ser mais ou menos difícil, divertido, doloroso, o leitor chama de prazer. E, se é de fato um leitor, não pode viver sem ele.
                Crianças misteriam livros de uma forma muito particular. Podem segurá-los de cabeça para baixo, de trás para frente, sem a mínima noção do que vai escrito ali. Mas nisso estão misteriando, você pode ter certeza. E quando aprendem a ler, muitas vezes perdem a magia de misteriar um objeto sem saber o que de mais valioso (supõe-se) há dentro dele, misteriando apenas pelo olhar, pelo tato, se aproximando misteriosamente daquele objeto de papel que os adultos guardam na estante.
                Há misteriadores muito inteligentes, com sólida formação no ofício. Alguns são tão bons que deixam discípulos. Existem aqueles que estudam a vida inteira, dedicando décadas e décadas de existência a perseguir um único mistério, que nem sempre conseguem misteriar. Há misteriadores de todo tipo, em todas as áreas. Afinal, parafraseando Drummond, o que pode uma criatura, entre outras criaturas, senão misteriar?
Nenhum misteriador, no entanto, por mais esperto, talentoso ou genial que seja, vai alcançar o que se passa de fato na cabeça de uma menina de seis anos ao criar, como quem não quer nada, uma palavra nova, feita de pedaços de palavras antigas, tão fresca e saborosa como uma frutinha que não existe. 

Flávio Carneiro




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